Gabriel Guimarães (MathPunk): “A matemática ainda é ensinada de forma a mecanizar como é que se resolvem exercícios sem se compreenderem, verdadeiramente, os conceitos”

Gabriel Guimarães (MathPunk): “A matemática ainda é ensinada de forma a mecanizar como é que se resolvem exercícios sem se compreenderem, verdadeiramente, os conceitos”

von Prof. Ângelo -
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por Ana Monteiro Fernandes,    29 Novembro, 2025

Gabriel Guimarães (MathPunk): “A matemática ainda é ensinada de forma a mecanizar como é que se resolvem exercícios sem se compreenderem, verdadeiramente, os conceitos”MathPunk (Gabriel Guimarães) / DR

Tem dedicado a sua vida à divulgação da matemática, não propriamente a ensinar a fazer contas ou exercícios, mas com a mensagem de que esta ciência e disciplina pode ir muito além disso, explorando o lado criativo e a ligação que pode ter com as outras áreas. Assim, através dos seus canais nas redes sociais, MathPunk, Gabriel Guimarães já relembrou curiosidades interessantes desde a complexidade do primeiro acorde da canção “Hard days night”, dos Beatles, passando pelos jogos e casinos online e o porquê da casa ganhar sempre, até à explicação do método de hondt e do voto útil, e onde residem as suas falhas.

É divertido, descontraído, informal e envolvente, ao mesmo tempo que explica a razão do porquê da matemática se relacionar com as várias áreas da vida. Nem tudo tem de ser útil, nem todo o conhecimento matemático tem de ter uma utilidade, mas é sempre um bom complemento e treino, até porque, como explicou em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA): “Costumo dizer que o mais importante é as pessoas encontrarem algo de que gostem e lutarem por isso para poderem seguir os seus sonhos: seja na matemática ou em outra coisa qualquer. Mas a verdade é que para optimizarmos as probabilidades de trabalharmos numa área de que gostamos e sermos bem sucedidos, faz sentido fazermos esse investimento na matemática porque é o alicerce de todas as ciências, assim como é importante na arte, na música.” Frisando, claro está, que ninguém tem de ser o Deus desta disciplina que ainda dá muitas dores de cabeça a quem estuda. 

Capa do livro / DR

“A matemática não morde” é o seu novo livro e, em conversa com a CCA, lembrou as razões pelas quais “poderia ser uma boa táctica tentar envolver mais os alunos na construção do conhecimento e também mostrar que a matemática é feita de humanos para humanos”. Abordou-se também a Inteligência Artificial, que é só isso mesmo, algoritmos, e que arte feita por Inteligência Artificial não é arte; os desafios das redes socias mas também o que aprendeu com elas, passando pelos desafios da abordagem da matemática nas escolas. 

Vamos começar pelas aulas de matemática. Achas que falta dinâmica na forma como as aulas são dadas, ou ainda são muito centradas, apenas, na resolução de exercícios?

Acho que, de facto, falta uma certa dinâmica nas aulas de matemática porque ainda é uma disciplina que é ensinada de forma a que os alunos saibam mecanizar como é que se resolvem certos exercícios sem compreenderem, verdadeiramente, os conceitos. Penso que poderia ser uma boa tática tentar envolver mais os alunos na construção do conhecimento e também mostrar que a matemática é feita de humanos para humanos. É uma área que tem toda uma história, muito colaborativa, criativa, e se introduzirmos elementos de descoberta, puzzles, quebra-cabeças um bocado mais fora da caixa, e se pudesse atrair e captar mais a atenção dos alunos sem nos basearmos, só, em técnicas e ferramentas para resolver problemas rotineiros, poderia ser mais interessante.

“A beleza da matemática acaba por ir além daquilo que aprendemos na escola.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Achas que só fazer contas e resolver os exercícios não ajuda? Ou seja, para sabermos desenvolver o nosso raciocínio cognitivo há muitas mais coisas por trás, esses tais jogos de dinâmicas e quebra-cabeças?

A parte de saber resolver os exercícios que nos dão na escola é, sem dúvida, muito importante. Quem sabe fazer isso bem, claro que já tem muito mérito e, claro, quem dera que a maioria dos alunos dominasse esse aspecto. Mas acho que para ter um verdadeiro entendimento do poder da matemática convém ir um bocado além disso, além da sala de aula, assim como fazemos com outras disciplinas. Aprendemos o português na escola mas também lemos livros que não lemos nas aulas, assim como comunicamos coisas que não comunicamos na escola. Mesmo noutras áreas do conhecimento é natural as pessoas irem procurar outras fontes de aprendizagem. Na matemática, a meu ver, ainda há muito esta ideia: “Ok, vou ficar pelo que aprendo na escola e já é muito, já não consigo dar conta disto, portanto, nem sequer vou tentar ir mais além”. Mas a beleza da matemática acaba por ir além daquilo que aprendemos na escola.

Foste um aluno com gosto por todas as disciplinas. A matemática foi a tua paixão, mas notas que, por exemplo, as outras disciplinas, tanto o português ou até as ciências naturais, exigem de nós um outro tipo de raciocínio, enquanto a matemática exige outro? Há quem creia que num determinado grupo de disciplinas se pode camuflar, de alguma forma, mais facilmente as dificuldades, mas na matemática não. Ou seja, se um alicerce não está bem construído, então a partir daí já não se vai conseguir fazer mais nada. 

A verdade é que a matemática tem essa particularidade: o conhecimento matemático é todo ele muito construído um em cima do outro, são vários blocos. É como se fosse uma casa, se não dominarmos os alicerces, o resto não pode ser construído por cima. Por isso é que muitas pessoas dizem, ”ah, eu até gostava de matemática, mas depois perdi o fio à meada e nunca mais dei com a matemática, nunca mais consegui acompanhar”, porque, de facto, é preciso termos este acompanhamento constante, tendo em conta que os temas vão ficando progressivamente mais complexos e são baseados em coisas que aprendemos anteriormente. Nas outras disciplinas isso não se manifesta tanto. Claro que em todas as disciplinas nós temos um aumento do grau de complexidade, mas há temas que são muito mais desconexos uns dos outros. Posso não dominar a matéria de história referente à Segunda Guerra Mundial, mas posso dominar a parte do Império Romano e são duas coisas que não têm nada a ver uma com a outra. Em Ciências Naturais podemos argumentar da mesma forma. Na matemática isso não acontece. Não é uma disciplina à base de memorização, aquilo que vamos encontrar nos testes e nas avaliações vão ser problemas que à partida nunca encontramos antes: podemos ter encontrado parecidos, mas não exatamente com aqueles números e daquela forma. Por isso, precisamos mesmo de saber fazer as coisas e não apenas memorizá-las. Depois, também há a perspectiva de que mesmo dentro da própria matemática todas as matérias estão muito interligadas. Se não dominar a Álgebra também não me vou safar na Geometria, porque a Geometria também vai buscar coisas de Álgebra. É o que já falámos, sobre ser muito um conhecimento cumulativo.

MathPunk (Gabriel Guimarães) / DR

Há a ideia de que os alunos ficam desanimados porque não compreendem como o que aprendem pode ser útil para o futuro. Há sempre esta ideia de que o conhecimento tem de ser utilitário. Acreditas nisto ou achas que tem de se explicar melhor que, por vezes, também é necessário aprender coisas que à partida podem parecer inúteis?

Isso é uma questão muito pertinente porque, de facto, as pessoas têm uma visão muito utilitária da Matemática e acabam por não ter essa visão em relação às outras disciplinas. Essas mesmas questões, “onde vou usar o Teorema de Pitágoras”, ou “onde vou usar as equações de segundo grau”, também podem ser aplicadas noutros contextos: onde é que vou usar o sistema digestivo das minhocas? Onde é que vou usar as orações sintáticas? É um tipo de argumento muito direcionado à Matemática, mas se quisermos podemos generalizar para todas as áreas. Por isso é que acho que é importante tentar consciencializar os alunos que nem tudo tem de ser utilitário. Podemos aprender coisas que, no momento, nos parecem inúteis e sem uma grande aplicação no mundo real, mas tudo aquilo que aprendemos, todas as pecinhas de conhecimento moldam o nosso cérebro, sobretudo numa fase tão estruturante como é a infância e a adolescência. O nosso cérebro, nessas idades está em desenvolvimento, então temos de o trabalhar para que ele se desenvolva de forma transversal e isso implica sabermos escrever, sabermos ler, sabermos fazer cálculos, sabermos resolver problemas. Todas essas disciplinas vão dar-nos ferramentas diferentes e moldar o nosso cérebro de uma certa forma. A Matemática, em particular, é importante para fomentar e melhorar o nosso raciocínio lógico, raciocínio este que vamos ter de utilizar durante toda a nossa vida para resolvermos, de forma mais racional, os problemas que nos aparecem à frente, mesmo que eles não envolvam diretamente o Teorema de Pitágoras ou as equações de 2.º grau.

“O conhecimento matemático é todo ele muito construído um em cima do outro, são vários blocos. É como se fosse uma casa, se não dominarmos os alicerces, o resto não pode ser construído por cima.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Numa das tuas TED Talks, falaste das Olimpíadas de Matemática. Queres falar sobre essa experiência e como te abriu os horizontes?

Só para dar um contexto, as Olimpíadas de Matemática são uma das competições de Matemática com mais importância e visibilidade a nível nacional. O objetivo é os alunos serem mesmo desafiados a nível criativo para resolverem problemas. Na escola, a base pauta-se muito por isto: damos esta matéria e resolvemos os exercícios que sabemos que têm a ver com aquela matéria. São-nos apresentados exercícios e já sabemos, mais ou menos, o que temos de fazer. Sabemos que páginas do manual devemos consultar para os resolver. Nas olimpíadas é completamente o oposto. São-nos apresentados enunciados e ficámos do género: “não faço a mínima ideia se vou resolver este problema usando uma equação, ou geometria, ou usando probabilidades. São enunciados muito ingénuos, muito simples, mas cuja resolução não é evidente. Não são exercícios, são mesmos desafios, e é uma forma de encarar e fazer a matemática completamente diferente. A ideia de matemática que tradicionalmente passa na sala de aula é que é algo muito mecânico e rotineiro, quase como se fossem receitas. A receita é fazer um bolo, mas estás a ver uma equação. Ao passo que nas olimpíadas não sabes que receita hás-de usar. Tens mesmo de usar a tua criatividade e uma compreensão mais profunda de como as várias áreas da matemática se interligam entre si, além de que tens de ter um excelente raciocínio para resolver certos problemas. 

Achei curiosa essa história, até porque fazes questão de frisar que a matemática é, também, criatividade e exige capacidade de interpretação, tal como o português também exige essa capacidade de interpretação. Num reel teu, do ano passado, em que apresentas um exercício ao ChatGpt, o chat errou porque notaste, exactamente, que houve um problema de interpretação por parte do chat. Ou seja, é a prova de como a matemática, criatividade e capacidade de interpretação estão sempre interligadas. 

Muitas vezes, esse é o principal problema dos alunos. Os alunos até ficam com a sensação de que dominam certas ferramentas, mas depois chegam ao teste e não percebem o que o exercício está a pedir, porque os enunciados são feitos à base de texto. Muitas das vezes, as dificuldades dos alunos não são, propriamente, manipular as ferramentas, é compreender o que o exercício pede e, das opções que têm dentro da caixa de ferramentas, qual é a que devem usar para a resolução do exercício. Acho que todas as áreas do conhecimento, sobretudo a língua e a matemática, estão mesmo muito interligadas. Também há muito a ideia de que as resoluções dos exercícios de matemática são fazer contas e que não é preciso escrever nenhuma frase: é só fazer as contas, resolver as equações ou as fórmulas, e aí está a resolução. Mas aprendi desde muito pequena, nas olimpíadas, que a resolução de um problema matemático é quase como a resolução, a resposta a um teste de português: devemos escrever parágrafos estruturados, com princípio, meio e fim, e apresentar no meio de frases as fórmulas de matemática. Isso devia ser muito mais incutido e penso que nunca poderemos ter uma população com elevada literacia a matemática, se não tivermos uma população com elevada literacia verbal ou linguística a português. 

O que senti na escola foi que, muitas vezes, não havia um olhar ou uma atenção para a verdadeira dificuldade do aluno. Depois, é como disseste, o conhecimento é como uma casa. Se falham as bases, não se pode construir o tecto se as bases não forem boas. Sentiste isso na escola? Se calhar não, no teu caso, mas pelo que vias à tua volta? 

No meu caso, nunca tive grandes dificuldades, e sempre fui uma pessoa que se adaptou bem a estes métodos de ensino mais tradicionais e ao que é mais comum numa sala de aula. Mas dentro do meu grupo de amigos, tenho muitos amigos que andaram comigo na escola e que acho que são pessoas muitíssimo inteligentes, mais inteligentes do que eu, até, que não se deram bem, ou seja, na escola não se destacaram e tinham negativas, não gostavam de estudar e, portanto, acabaram por não ser valorizados nesse aspecto. Sinto que a escola, da forma como está concebida, acaba por falhar a estas pessoas. Lá está, são meus amigos e sei que adoram aprender mais, adoram conhecimento, adoram desafios, adoram jogar jogos que desafiem o raciocínio deles e, no entanto, na matemática, tinham estes maus resultados porque eram desvalorizados pelos professores e vistos, simplesmente, como alunos preguiçosos que tinham as capacidades mas não queriam aprender e não queriam trabalhar. É um bocadinho injusto porque todos temos capacidades e algumas delas acabam por não ser valorizadas o suficiente, no regime tradicional: uma pessoa pode ter um excelente raciocínio, mas se não souber resolver aqueles exercícios típicos daquela forma típica que o professor quer, vai ser penalizada. 

“Nunca poderemos ter uma população com elevada literacia a matemática, se não tivermos uma população com elevada literacia verbal ou linguística a português.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Como este foi um ano de eleições explicaste, num reel teu, o “método de Hondt”, queres explicar um pouco melhor as falhas deste sistema e porque é que ele pode ser injusto?

Em primeiro lugar, esse vídeo do “Método de Hondt” foi para as pessoas perceberem, exatamente, o que é que acontece quando há eleições e como é que os votos são distribuídos porque, se calhar, há muito esta ideia que é tudo só por percentagens: há uma percentagem de pessoas que votou naquele partido, então aquele partido vai ter essa percentagem de representatividade mas, na verdade, é um bocadinho mais complexo do que isso. É difícil explicar o método assim por palavras, mas a ideia é que são recolhidos os votos dos vários partidos e, depois, são divididos, sucessivamente, por 1, por 2, por 3, por 4 e, consoante o número de mandatos, por exemplo, se forem 100 mandatos, escolhem-se os 100 maiores valores que aparecem nessa tabela, onde se fazem as várias divisões. Ao estudarmos o “Método de Hondt”, percebemos que há muitos votos que são desperdiçados e que esse é um dos principais problemas. Depois, os partidos maiores são os mais favorecidos e por isso não é um método perfeito: é o chamado método de representatividade proporcional porque é suposto haver esta proporção entre os votos que as pessoas dão e a representatividade que o partido tem, mas de facto tem algumas falhas e há outros métodos. Há países que usam, por exemplo, “Método de Sainte-Laguë” que, em vez de fazer a divisão dos votos por 1, 2, 3, 4 e assim sucessivamente, só faz pelos números ímpares e, assim, já não haja esta sobrevalorização dos grandes partidos. Haveria outras formas de contornar esses problemas, também, como os círculos de compensação mas, de facto, acho que é um tema que acaba por não ser muito discutido e faz sentido que não o seja, porque estamos a falar do método que beneficia os grandes partidos. Os grandes partidos são aqueles que têm mais visibilidade, por isso, claro que não querem mudar o método que funciona melhor para eles. 

Socialmente, o vício do jogo é um problema grave. Sabemos que há pessoas fortemente viciadas nas raspadinhas, por exemplo, assim como nas apostas e casinos online. Achei curioso que há pouco tempo saiu uma notícia que dizia que os estudantes portugueses, com idade entre os 15 e os 16 anos, fumam e bebem menos do que a média europeia, mas apostam mais em jogos de apostas a dinheiro. Porque é que matematicamente estes jogos nunca são uma boa ideia? 

São feitos cálculos, na concepção desses jogos, para que a longo prazo a casa tenha sempre vantagem. Vamos pensar na roleta europeia: apostar no vermelho, as odds são de 18 para 37, ou seja, são ligeiramente inferiores a 50%, e a casa paga 2 para 1. Só seria justo se as odds fossem mesmo de 50%, portanto há uma discrepância entre o valor que a casa paga ao jogador se ele ganhar e a probabilidade real disso acontecer, então a casa paga sempre menos do que a verdadeira probabilidade. Há um conceito importante em matemática que se chama valor esperado, e se calcularmos o valor esperado dos jogos de apostas, vamos sempre ter um valor esperado negativo para quem aposta, ou seja, a longo prazo o jogador vai perder dinheiro. Claro que a curto prazo pode ganhar, mas quanto mais jogar, mais dinheiro vai perder e as casas têm lucro precisamente por causa disso. Entre o dinheiro que as casas de jogo oferecem e as probabilidades reais das pessoas ganharem há uma discrepância. Essa discrepância entre esses dois valores traduz-se em lucro para as casas de apostas. 

“Na minha adolescência adorava consumir livros de divulgação matemática e acabava por ir muito aos autores estrangeiros porque não havia muitos autores portugueses. Penso que ainda é uma lacuna no nosso mercado editorial e seria bom apostarmos em divulgação científica e matemática mais dirigida a jovens, com uma linguagem mais jovem e mais próxima dos jovens.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Vens de uma área lógica e falas como é importante o desenvolvimento do raciocínio, do desafio, a importância de pensar mas, no entanto, há estudos que indicam que as redes sociais em que tu e todos nós estamos e utilizamos, através dos vídeos rápidos e do constante fluxo de informação, podem contribuir para a redução da nossa capacidade de atenção e para a adição: as redes sociais são viciantes. Tendo tu os teus próprios canais e, ao mesmo tempo, sendo tudo de uma área que auxilia o raciocínio lógico, como é que olhas para isto? Já pensaste nestas questões?

Isso é completamente verdade, temos de ter consciência desse facto e, sobretudo, temos de tentar ensinar isso às camadas mais jovens e alertá-las para os perigos das redes sociais. Costumo dizer que as redes sociais até podem ter mais malefícios do que benefícios, mas a verdade é que se queremos chegar às pessoas, são as ferramentas que temos. É claro, no entanto, que me entristece muito que os algoritmos sejam feitos de forma a, simplesmente, gerarem lucro para as redes sociais, para os oligarcas tecnológicos que se estão a marimbar para a saúde mental das pessoas ou das consequências que isto tem. Claro que me entristece que certo tipo de conteúdo seja censurado por alguns motivos enquanto deixam passar outros que, na verdade, deveriam ser removidos. É frustrante estarmos à mercê dos bilionários que estão por trás das redes sociais, mas a verdade é que é a forma mais eficaz que temos de chegar às pessoas. O meu objetivo é divulgar matemática, é chegar ao maior número de pessoas possível, incluindo os jovens e, portanto, é a ferramenta mais eficiente para fazer isso: daí também alinhar na onda de fazer vídeos curtos, interativos e que chamam a atenção das pessoas, embora reconheça que o problema que mencionas é, efetivamente, um problema e é preciso as pessoas estarem mais conscientes e de como fazer um bom uso das redes sociais. 

Mas as redes sociais ajudaram-te a compreender melhor as pessoas? No teu caso, o que é que as redes sociais te ensinaram a nível humano?  

Acho que, matematicamente falando, ajudou-me a perceber um bocado o ponto de partida da maioria das pessoas e as suas falhas: as dúvidas, as frustrações que as pessoas têm em relação à matemática. Ajudou-me, também, a perceber melhor porque é que tanta gente não gosta de matemática e porque é que tanta gente acha a matemática difícil. Quando comecei, até fazia vídeos um pouco mais complexos porque estava um pouco alienado da realidade. Achava que toda a gente sabia o mesmo que eu e tinha o mesmo interesse que eu, então foi um choque de realidade. As redes ajudaram-me a aproximar-me mais de pessoas que, se calhar, não tinham tanto interesse como eu tinha, e que não gostaram tanto de matemática na escola como eu gostei. Isto, no que diz respeito à matemática. A nível mais pessoal e geral, conseguimos ver o quão fácil é alguém deixar comentários de ódio, invasivos e desrespeitosos. O quão fácil é espalhar desinformação porque tenho muitos seguidores que, às vezes, me enviam reels com curiosidades falsas que não correspondem à realidade, eles ficam todos fascinados e digo: “ok, isso não é verdadeiro. Era muito giro se fosse, mas isso não é verdade.” Então, também me fez perceber o pior lado da humanidade, digamos assim, um lado muito julgador e sem critérios para filtrar o que é que é verdade, o que não é, o que é que está certo, o que não está.

“O meu sucesso a matemática deve-se muito a trabalho e muito pouco a talento inato.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Mas acaba por ser uma ajuda dentro da própria rede. Para as páginas que desinformam, é bom estarem lá, também outras páginas preocupadas com a verdade e com a desmistificação.  

Sim, é verdade. Não é algo que, por acaso, faça muito, e acho que é mais comum existir desinformação noutras áreas científicas do que, propriamente, na matemática, porque a matemática, apesar de tudo, é uma área mais exata, mais objetiva: é mais evidente quando se está a dizer uma mentira ou não, porque é mais fácil de verificar, mas a verdade é que há muitos divulgadores científicos que conseguem desmistificar mitos e argumentos de outras páginas. Essa desinformação é muito comum em áreas como a biologia e a nutrição, então, isso também é uma vantagem das redes sociais, de termos essas páginas que tentam trazer a verdade e combater quem traz desinformação. 

Tem-se discutido muito, com o desenvolvimento da tecnologia e, agora, da inteligência artificial – mas falo do desenvolvimento da tecnologia como um todo – sobre os trabalhos, no futuro: se serão valorizados os trabalhos mais mecanizados ou se serão, antes, aqueles que requerem mais criatividade ou uma maior subjetividade. O que é que tu próprio pensas disto? Todo este desenvolvimento vai-nos obrigar a, cada vez mais, percebermos matemática e compreendermos o quão importante é o raciocínio lógico ou, se calhar, vão ser as outras áreas que nos vão fazer lembrar onde reside a nossa humanidade?

É uma questão complexa e há coisas que são difíceis de prever. Pessoalmente, uma coisa que me faz muita confusão é começar a usar-se a Inteligência Artificial para gerar conteúdo, a chamada arte gerada por Inteligência Artificial que, a meu ver, não é arte, porque arte tem uma forte componente humana e criativa. Dizer que a Inteligência Artificial tem criatividade, ou usarmos essa palavra que associamos tanto à criatividade humana e transferi-la para uma máquina que, no fundo, é só um conjunto de algoritmos, é estranho. Faz-me muita confusão que a Inteligência Artificial esteja a ser usada para trabalhos mais artísticos ou que envolvam mais criatividade. O objectivo, digo eu, da Inteligência Artificial, deveria ser fazer coisas que os humanos não querem fazer. Estarmos, então, a tirar a oportunidade dos humanos fazerem música, ou fazer outro tipo de arte e colocar uma máquina a fazer isso, acho que é extremamente perverso e acho que esse não deveria ser o caminho que a humanidade deveria perseguir. Façam uma Inteligência Artificial que lave a loiça, façam uma Inteligência Artificial que arranje sanitas, mas não vamos fazer uma Inteligência Artificial que tire o papel dos músicos, dos pintores e dos designers porque, isso, são tarefas que os seres humanos gostam, tarefas criativas. É muito assustador pensar que a Inteligência Artificial possa roubar esses trabalhos mais criativos. Mesmo cientificamente, a matemática acaba por ser uma área que, embora, envolva criatividade, acaba por ser uma área muito algorítmica e, embora a Inteligência Artificial ainda não esteja muito avançada a nível de resolução de problemas matemáticos, pode vir a estar, dada à algoritmização da Inteligência Artificial. É muito triste vermos que os trabalhos mais intelectuais e mais criativos poderão estar mais ameaçados, do que os trabalhos rotineiros e aborrecidos que ninguém quer fazer. Acho que devemos estar todos um pouco preocupados e reflectir, enquanto humanidade, o caminho que queremos seguir. 

Achas que é cada vez mais importante entendermos os algoritmos e o que está por trás da construção da IA e redes sociais, até para sermos menos manipulados?

Acho que esse conhecimento é fundamental, até para as pessoas perceberem que a Inteligência Artificial não é inteligência. É um conjunto de algoritmos, claro que muito complexos, com muitas camadas, muita estatística e ciência por trás e coisas computacionais e matematicamente difíceis de compreender, mas quanto mais as pessoas souberem como a Inteligência Artificial funciona, mais percebem que os modelos de linguagem podem dar respostas erradas – faz sentido que dêem respostas erradas – e que sim, estão enviesados, porque treinam com dados, eles próprios enviesados, e que está tudo feito para se lucrar à nossa custa e em detrimento da nossa saúde mental e capacidades mentais. Claro que esse conhecimento é importante, e quanto mais cedo as pessoas tiverem noção disso, melhor. 

“A matemática abre muitas portas e fecha muitas portas. Entristece-me ver pessoas que vão para áreas que não são a sua primeira, segunda ou terceira opção só para fugir à matemática.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Qual foi o teu primeiro foco, o teu primeiro objectivo ou preocupação ao escrever o livro “A Matemática não morde”?

A minha primeira preocupação foi tentar perceber que livro queria escrever e para quem. Porque se não tivermos na nossa cabeça um público alvo claro e uma missão clara, é difícil, depois, materializarmos o livro. Então, a primeira decisão que fiz foi a seguinte: quero fazer um livro em que aborde um bocado de todas as áreas, ou as principais áreas da matemática – aritmética, geometria, probabilidade, lógica, cálculo – e que tenha pequenos capítulos, pequenos pedacinhos de conhecimento, em que explico às pessoas conceitos que, se calhar, pensam que são complicados e que nunca compreenderam na escola de uma forma mais simples, mais leve e bem humorada. Este livro não é só pensado para jovens que estejam ainda na escola e para os motivar mais a aprender matemática, mas também feito a pensar muito nos adultos que tenham traumas com a matemática e que lamentam não terem aprendido matemática no tempo deles. Recebo muitas mensagens deste género: “Lamento muito, na minha altura, não ter aprendido tanto sobre matemática. O teu conteúdo é tão interessante, mas na escola não consegui perceber.” Por isso, foi também pensado nesses alunos. A ideia é mesmo pegar em vários tópicos essenciais da matemática e explicá-los de forma mais simples, com contextualização histórica, com humor e desafios pelo meio, para também desafiar as pessoas que já estejam um pouco mais avançadas.

Mas é curioso como há muitas pessoas que na escola não ligavam nada à matemática mas, mais tarde, depararam-se com algo que gostariam de aprender e não o fazem, ou não evoluem mais, precisamente, por causa da matemática. 

A matemática abre muitas portas e fecha muitas portas. Entristece-me ver pessoas que vão para áreas que não são a sua primeira, segunda ou terceira opção só para fugir à matemática. E está tudo bem, ninguém tem de ser o Deus da matemática, ninguém tem de ser perfeito e dominar a matemática. Costumo dizer que o mais importante é as pessoas encontrarem algo de que gostem e lutarem por isso para poderem seguir os seus sonhos: seja na matemática ou em outra coisa qualquer. Mas a verdade é que para optimizarmos as probabilidades de trabalharmos numa área de que gostamos e sermos bem sucedidos, faz sentido fazermos esse investimento na matemática porque é o alicerce de todas as ciências, assim como é importante na arte, na música. Como é tão presente em todas as áreas do conhecimento, é importante o investimento na matemática, mesmo que não gostemos, para evitarmos que portas se fechem. 

“Se optimizarmos as probabilidades de trabalharmos numa área de que gostamos e sermos bem sucedidos, faz sentido fazermos esse investimento na matemática porque é o alicerce de todas as ciências, assim como é importante na arte, na música.”

MathPunk (Gabriel Guimarães)

Não acreditas que isto tem a ver só com talento.

Sem dúvida, não é só talento. Acho que sou a prova viva disso porque nunca fui, em criança, uma pessoa particularmente talentosa a nível de raciocínio. Lembro-me perfeitamente, quando estava na primária, e às vezes iam lá pessoas de associações do tipo “Matemática Lúdica”, e fazíamos jogos que envolviam raciocínio lógico, e eu era terrível nesses jogos matemáticos. Nunca tive, portanto, nenhum talento especial manifestado em criança para a matemática. Apenas decidi, a certo ponto da minha vida, quero ser bom a matemática e vou trabalhar para isso. O meu sucesso a matemática deve-se muito a trabalho e muito pouco a talento inato. 

Achas que o mercado editorial trata bem a matemática? Há muitos bons livros de matemática acessíveis, ou ainda achas que há algumas lacunas nesse aspecto? 

Acho que ainda há algumas lacunas. Temos muitos bons divulgadores científicos em Portugal e há livros de autores como José Paulo Viana que encontramos numa FNAC, numa livraria normal. Mas acho que ainda há muita falta de divulgação da matemática em português e por parte de autores portugueses. Há muito poucos livros dessa índole, pelo menos livros populares. Na minha adolescência, por exemplo, adorava consumir livros de divulgação matemática e acabava por ir muito aos autores estrangeiros porque não havia muitos autores portugueses. Penso que ainda é uma lacuna no nosso mercado editorial e seria bom apostarmos em divulgação científica e matemática mais dirigida a jovens, com uma linguagem mais jovem e mais próxima dos jovens. É isso que também tento fazer no meu livro e que faz com que se destaque da divulgação científica mais tradicional.

Original: Comunidade, Cultura e Arte